MISTÉRIO

'Está mal contada essa história', família questiona aposta que causou afogamento em Santos

História ainda é quebra cabeças com peças faltando; postura dos responsáveis pela travessia gera revolta e familiares não acreditam na versão registrada

Rebeca Freitas
Publicado em 25/08/2023, às 09h32

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Vídeos mostram momento do afogamento de Sérgio Luiz Pereira, na travessia entre Santos e Guarujá - Arquivo pessoal/ Ana ísis
Vídeos mostram momento do afogamento de Sérgio Luiz Pereira, na travessia entre Santos e Guarujá - Arquivo pessoal/ Ana ísis

Sérgio Luiz Pereira morreu precocemente na sexta-feira (18), com apenas 43 anos. Ele pulou no mar durante a travessia de barca entre Guarujá e Santos e o motivo teria sido uma suposta aposta valendo dinheiro, de acordo com a versão registrada no boletim de ocorrência. Ana Ísis, irmã mais nova de Sérgio, não acredita na hipótese de que ele teria se afogado por conta de R$50. 

“Eu não posso acusar, mas acho que foi irresponsabilidade da *DERSA e desse rapaz, que fez uma brincadeira de mau gosto. Se é que foi isso mesmo que ele fez com meu irmão, pois tenho certeza que não foi isso e que a história é outra”, insinua Ana. Ela ainda aponta que as câmeras da barca serão investigadas. O atestado de óbito diz que a causa da morte foi afogamento e a polícia aguarda a necrópsia de Sérgio. 

homem com mãos para o alto
Sérgio havia completado 43 anos há pouco tempo, em 1º de julho, e é descrito como uma pessoa alegre e carinhosa (Foto: Aquivo pessoal / Ana Ísis)

Segundo Ana Ísis, o irmão tinha limitações físicas como um olho de vidro e tornozelos fracos, devido a fraturas não tratadas. Por conta disso, ela crê que ele não pularia na água de maneira imprudente, apesar de saber nadar. “Ele sabia que a qualquer momento poderia ter uma câimbra por causa dos tornozelos e entrar água no olho dele. Então está muito estranho, está mal contada essa história, a gente não está acreditando não”, reconhece Ana. 

Natural de Guarujá, desde seu nascimento em 1980, Sérgio cresceu à beira-mar, nadando. Ele era o mais velho de três irmãos, pai de duas garotas e avô de dois netos ainda bebês. “Não vou dizer que meu irmão aceitou uma aposta, porque ele nunca gostou dessas coisas, assim como eu e minha irmã também não. Porque minha mãe sempre contou histórias pra gente de pessoas que já perderam um monte de coisa por aposta. E outra, meu irmão tinha 43 anos. Quantas pessoas já não devem ter feito essas brincadeiras de aposta com ele e ele nunca aceitou”, alega a irmã. “Ele não ia arriscar a vida assim sabendo como minha mãe ia ficar”, desabafa. 

homem com bebê
Ségio deixa uma neta de 11 meses e outro de 2 anos, e duas filhas (Foto: Arquivo pessoal / Kailany Lopes)

A mãe de Sérgio, Maricelia, de 63 anos, quer respostas sobre a morte do filho e se sente revoltada. Inclusive, revolta é um sentimento comum entre membros da família, que questionam porque não houve uma maior mobilização para tentar socorrer Sérgio. “Porque não salvaram meu irmão? Porque não jogaram uma boia? Porque não apareceram barquinhos próximos? Ninguém ligou. Trataram ele como se fosse um animal. Sabe um saco boiando no meio do mar? Trataram ele assim.  Somente um rapaz que estava vindo do trabalho na barquinha teve coragem de pular”, questiona Ana Ísis, com indignação.   

um homem ao lado de três mulheres
Sérgio Luiz ao lado de suas irmãs mais novas e sua mãe ( Foto: Arquivo pessoal / Ana ísis)

Ato heróico

O analista químico Renan Iglesias foi a primeira das duas únicas pessoas que pularam na água para tentar oferecer ajuda a Sérgio. Renan confirma que tirou Sérgio do mar com vida. “Após tirarmos o senhor da água, eu vi que ele estava respirando e já tinha um pessoal cuidando dele, naquele momento, fui embora com uma sensação de dever cumprido. Mas quando cheguei no trabalho no dia seguinte, o pessoal veio ao meu encontro falando que ele não resistiu, fiquei muito triste em saber”, lamenta.

Ainda segundo Renan, mais de 50 pessoas gravaram o afogamento, mas somente ele e mais um rapaz se arriscaram pulando para salvar Sérgio. “Eu faço essa travessia todos os dias, devido a trabalhar aqui na Ilha Barnabé. Sei nadar o suficiente pra tentar ajudar alguém caso eu consiga. Não sou exímio nadador, mas jamais deixaria alguém passar por algo assim e eu não fazer nada”, conta.

Em um dos vídeos que mostram o acidente, uma mulher clama para que Sérgio seja ajudado, pois ele tem ‘distúrbios psiquiátricos’. Segundo sua irmã mais nova, Ana Ísis, ele não tinha transtornos mentais, mas era dependente químico. Apesar do vício, Sérgio é descrito como uma pessoa amorosa, carinhosa e engraçada. “Ele nunca foi agressivo, sempre respeitou minha mãe, muito amoroso com as filhas e netos, sempre preocupado”. 

Instantes de aflição

Vídeos mostram que Sérgio nadou por algum tempo, depois debateu-se na água e chegou a boiar desacordado. “Não posso acusar que foi um crime, mas tenho minhas dúvidas”, diz Ana Ísis.  

A versão do acidente registrada no boletim de ocorrência é a de que um vendedor ambulante estava oferecendo balas a um passageiro, que recusou o doce, mas lhe ofereceu R$ 50 para pular na água. Ainda segundo o documento, o comerciante recusou a proposta, mas Sérgio teria ouvido o diálogo e aceitado o desafio pelo dinheiro. O boletim foi elaborado com base no testemunho do autor da suposta aposta, um rapaz de 20 anos. 

O Pintor Paulo César era um dos passageiros presentes na mesma barca que Sérgio e desacredita na versão da aposta por não ter visto nenhum ambulante. “Lá não tinha vendedor de doces. Achei isso que foi publicado muito estranho, pois eu estava na barca com a minha filha e não vi vendedor nenhum”, afirma.

A fala de Paulo foi essencial para que Ana desconfiasse da versão registrada no boletim de ocorrência, pois é natural que um vendedor de doces aborde diversas pessoas, principalmente aquelas acompanhadas por crianças. 

“Jogaram uma boia, mas o Sérgio não conseguiu pegar. Tiraram ele da água, ele falou que estava frio e que estava meio tonto. Eu liguei para a polícia, mas eles falaram que já tinha gente lá socorrendo, então eles não podiam fazer nada”, finaliza Paulo. De acordo com a prefeitura de Santos, a ocorrência foi atendida pelo Corpo de Bombeiros. Ainda segundo o município, o Samu foi acionado e constatou o óbito no local. 

Indiferença que gera indignação

A filha mais velha de Sérgio, Kailany, de 20 anos, não se conforma com a maneira que seu pai foi tratado. “O resgate dele poderia ter sido diferente, tinha muita gente ali olhando. E acredito que tinha pessoas que desde o começo estavam escutando ele pedindo socorro e não fizeram nada, não chamaram ninguém. Como mostra nos vídeos, só foi um rapaz e aí depois que ele pula, outro rapaz pula também pra tirar ele da água. Mas se ele não pulasse acredito que o corpo do meu pai ia ficar ali boiando até a hora de chegar o resgate e tirar ele da água”.

A jovem critica a postura da *DERSA diante do ocorrido: “Eu sei que ninguém é obrigado a nada, ainda mais pular pra salvar alguém. Mas ali ele não estava no meio do mar, ele já estava próximo ao acostamento. Eles preferiram ficar parados. Para mim isso foi uma omissão de socorro. Eles trabalham com passageiros em alto mar. Eles devem ter, ou pelo menos deveriam ter, cursos de primeiros socorros", sugere. 

"Acredito que isso tenha sido muita negligência da parte deles [da *DERSA]. Eles encaram como se isso não tivesse acontecido na barca, não prestaram testemunho. Eles não chegaram a explicar o que aconteceu, não fizeram nada. Eles simplesmente trataram o meu pai como se fosse um lixo. Um lixo boiando ali na água”, desabafa a primogênita. 

Kailany acredita ainda que o que aconteceu com seu pai abre uma discussão sobre os riscos deste tipo de travessia. “Então quer dizer assim que se uma criança pular ali ou ou um idoso sem querer cair ali por descuido eles também não vão fazer nada? Vão aguardar o resgate chegar? E aí a pessoa vai ficar lá, ou seja vai morrer também”, encerra. 

*Nota:  Em 2020, a DERSA - Desenvolvimento Rodoviário S.A. - foi extinta e os serviços de travessias litorâneas passaram a ser administrados pelo Departamento Hidroviário (DH), da subecretaria de Logística e Transportes, englobada pela Semil. Sendo assim, o DH é responsável pela travessia entre Santos e Guarujá, que dura 15 minutos e tem uma distância de 450 metros. A travessia é considerada a maior do mundo em volume de veículos, com média diária de 23 mil, segundo dados da pasta.

Em nota oficial, a Semil lamenta o incidente e esclarece que está à disposição das autoridades para colaborar com as investigações do caso e reforça, ainda, que a segurança dos usuários depende do respeito às orientações da tripulação e das equipes em terra.

Rebeca Freitas

Rebeca Freitas

Formada pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp)

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