Brasil tem 159 cães-guia para 6,9 milhões de deficientes visuais; conheça a história de Erséa, moradora de Praia Grande usuária de cão-guia
No Brasil existem 159 cães de assistência em atividade, segundo a União Nacional de Usuários de Cães-Guia. Em contrapartida, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019 revelou que aproximadamente 6,978 milhões de brasileiros são deficientes visuais. Ao mesmo tempo, a concentração de cães-guia é majoritária em regiões onde existem centros de treinamento para formar estes animais.
A região Sudeste aparece em primeiro lugar com 85 cães e a Sul com 49; a Norte aparece em última posição com apenas 1 cão. Ainda de acordo com a União de Usuários, a raça mais usada para esta finalidade é a do labrador, sendo que o mestiço entre labrador e golden retriever vem logo em seguida.
A baixa disponibilidade de cães de assistência é explicada por George Harrison, instrutor do Instituto Adimax, que treina cães-guia no interior de São Paulo desde 2006: “Os cães-guia foram popularizados nos EUA e na Europa em 1930, enquanto no Brasil eles só chegaram em 1998. Este delay [atraso] histórico coloca o Brasil em desvantagem em relação a outros países como os EUA que tem muitas instituições de treinamento”.
Harrison adiciona que se deve levar em conta que o Brasil é um país de dimensão continental, o que contribui para a pouca oferta de cães em comparação a nações como Portugal que tem extensão menor do que o estado de Pernambuco.
Desde 2005, uma lei federal assegura à pessoa com deficiência visual acompanhada de cão-guia o direito de ingressar e de permanecer com o animal em todos os meios de transporte e em estabelecimentos abertos de uso coletivo, sejam de uso público ou privado.
Passos para ter um cão-guia
Harrison explica que o primeiro passo para um deficiente visual ser beneficiado com um cão-guia através do Adimax é se inscrever no Instituto. Em seguida, é feita uma triagem que engloba apresentação de laudos médicos que comprovem a condição visual, além de entrevista com assistente social e técnicos do Instituto. “Os técnicos vão até a pessoa para fazer uma avaliação e acompanhar como é o dia a dia dela, se ela tem alguma característica que precisa ser desenvolvida para poder receber o cão-guia”, menciona.
George explica que o deficiente visual também precisa ter uma boa orientação e mobilidade para que um cachorro lhe seja atribuído. “O cão-guia é eficiente quando a pessoa sabe fazer mapa mental e se deslocar no espaço. Se ela tiver algum déficit neste sentido, o Instituto pode encaminhá-la para serviços de atendimento próximos a ela. Se ela estiver próxima do raio de 150 km do Instituto, nós temos profissionais que fazem esse trabalho de reabilitação”.
Antes de estar preparado para ser entregue, o próprio cão passa por algumas etapas, como passar um ano com uma família socializadora, ser treinado por instrutores por um período de quatro a seis meses e passar por adaptação com o deficiente visual por um mês.
A entrega do cão-guia é feita de maneira personalizada para que o relacionamento entre usuário e cão seja adequado. Após o treinamento do cão ser finalizado, é produzido um relatório completo que revela características e personalidade do animal. Posteriormente, o Instituto busca em seu banco de dados pessoas que combinem com ele. “Por isso os instrutores fazem as visitas para entender a peculiaridade de cada indivíduo. E aí a gente vai fazer um matching, que a gente brinca que é um casamento arrumado”, afirma Harrisson.
Após o cão ser entregue ao usuário, o Instituto Adimax permanece fazendo um acompanhamento vitalício do time (cão + deficiente visual). As visitas são frequentes durante o primeiro ano, depois se tornam anuais.
Harrisson explica que este acompanhamento é necessário porque ao longo do tempo podem ser criados vícios de comportamento que atrapalham o trabalho do cão. “O Instrutor pode apontar erros na postura e ir corrigindo isso ao longo da vida daquele time”, pontua.
Atualmente, o Instituto trabalha em um raio de 150 km de suas bases. “A gente quer atender o Brasil como um todo, mas queremos fazer isso com responsabilidade e capacidade de dar suporte. Então infelizmente se a pessoa está em um estado muito distante a gente ainda não tem como atendê-la da maneira que consideramos adequada”, alega o porta-voz.
O Instituto possui polos destacados em Santa Catarina e no Rio de Janeiro. A instituição também forma novos instrutores, o que é uma importante ferramenta de combate ao baixo número de cães disponíveis no Brasil.
Como ajudar
Falta a participação de famílias que aceitem ser socializadoras e permanecer com o cão por um ano com todos os custos pagos. Eles reforçam ainda que a participação social e quebra de preconceitos também é muito importante. “Existem comerciantes que ainda não entendem que o cão-guia pode entrar no estabelecimento comercial, no supermercado, no ônibus, em absolutamente todos os lugares que a pessoa frequenta. O cão-guia é como se fosse a cadeira de rodas daquela pessoa”, destaca George Harrisson.
No Instituto Adimax existe a possibilidade de apadrinhar um cão-guia desde filhote até que o processo de treinamento seja finalizado. Segundo a instituição sem fins lucrativos, o custo de um cão varia entre 60 e 80 mil reais. Neste valor, estão embutidos custos de ração, veterinário, todo o trabalho do treinador e também o acompanhamento vitalício que o Instituto oferece.
Presente na Baixada Santista
O Instituto Adimax tem três casos ativos na Baixada Santista. Dois deles estão localizados em Santos e um na Praia Grande. Erséa Alves é um destes casos. A mulher de 69 anos inicialmente morava em São Paulo quando foi beneficiada pela primeira vez com um cão-guia do Instituto Adimax, mas se mudou para a Praia Grande e hoje reside no bairro do Boqueirão. “Por conta dela, conseguimos beneficiar mais pessoas na região, pois já tínhamos uma logística montada para dar suporte para essa pessoa”, revela o treinador.
Erséa é acompanhada há três anos pela cadela Zoe, que é seu terceiro cão guia. Antes, Erséa foi guiada por Toby, um labrador macho, e Hattie, uma fêmea. Segundo o Adimax, o tempo de atividade de um cão varia de acordo com cada animal e, após sua aposentadoria, ele costuma permanecer como um pet para o deficiente visual.
Erséa garante que ter um cão-guia lhe trouxe inclusão social, dando-lhe a opção de ir sozinha a todos os lugares. “Eu tenho uma doença degenerativa da retina, a qual foi me causando a perda visual ao longo de minha vida e quando fiquei com grande comprometimento tudo se tornou muito difícil, começando pela locomoção entre outros fatores no meu trabalho. Tive então que me reabilitar e uma das minhas opções foi ter um cão-guia. A partir dele pude ter novamente independência e mais segurança para me locomover”, aponta.
A relação entre Erséa e Zoe vai além do utilitarismo. “Existe um amor muito grande entre nós. O apego entre nós é recíproco. Meus familiares sempre apoiaram e os receberam muito bem, bem como meus amigos e as pessoas que nos encontram na rua,”, declara.
Apesar de uma lei federal assegurar seus direitos, Erséa já passou por situações de discriminação. “Infelizmente, ainda existem pessoas que desconhecem a lei e nos impedem de entrar em locais públicos. Eu já tive problemas em restaurantes, lojas, mercados, Uber [transporte por aplicativo] e tenho certeza que não sou a única usuária de cão-guia que enfrenta este constrangimento no dia a dia”, expõe.
Hoje, Zoe é a grande companheira de Erséa em todos os aspectos de sua vida. “Todos meus cães-guias sempre foram para o meu trabalho e para as atividades das quais participei. Sempre me acompanharam para academia, viagens e festas. Hoje, minha rotina é mais tranquila, mas Zoe vai comigo para trabalhos voluntários, pilates, yoga, viagens, salão de beleza e para nossa caminhada à beira mar”, comemora.
Rebeca Freitas
Formada pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp)