A LUTA FORA DO TATAME

Sem patrocínio, medalhistas do litoral de SP podem ficar fora de torneio mais importante do mundo

Após conquistarem prata e bronze no campeonato Pan-Americano de caratê, duas atletas de Bertioga foram convocadas para Mundial na Turquia, mas podem perder a vaga por falta de recursos para pagar despesas de viagem. Sensação é de “angústia” e “frustração”, dizem treinadores que recorreram a vaquinhas para tentar custear despesas

Thiago S. Paulo
Publicado em 06/09/2022, às 15h14 - Atualizado às 17h56

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Ana Luisa e seu técnico Edson Radica Ana e Radica 3 - Sem patrocínio, medalhistas do litoral de SP podem ficar fora de torneio mais importante do mundo Karatecas na Praia - Imagem: Lila Radica / Instagram@lila._kiss
Ana Luisa e seu técnico Edson Radica Ana e Radica 3 - Sem patrocínio, medalhistas do litoral de SP podem ficar fora de torneio mais importante do mundo Karatecas na Praia - Imagem: Lila Radica / Instagram@lila._kiss

No final de agosto, Ana Luisa Nogueira e Amanda Sayuri, duas caratecas de Bertioga, no litoral de SP, conseguiram um feito notável no esporte: as atletas conquistaram um terceiro e um segundo lugar no Pan-Americano de caratê, disputado na Cidade do México.  

“Foi incrível. Meu primeiro campeonato internacional, direto um Pan-Americano, e trazer uma medalha pro Brasil”, relembrou Ana, com timidez, em entrevista por telefone ao Portal Costa Norte. “Foi uma sensação única”, recordou Amanda.

Amanda Sayuri durante competição Sayuri 1 - Sem patrocínio, medalhistas do litoral de SP podem ficar fora de torneio mais importante do mundo Karateca durante competição (Imagem: Acervo Pessoal Amanda Sayuri)

Com um certo acanhamento, ela usa o mesmo adjetivo que a colega para qualificar a conquista no México. “De verdade, eu nem esperava por isso, porque são os melhores da América. Então, ter a oportunidade de lutar com as melhores e ainda subir no pódio, foi incrível”.

Ambas aos 17 anos e igualmente da equipe júnior da seleção brasileira de caratê, Ana deixou o Pan-Americano do México com um bronze na categoria acima de 59 quilos do Junior Kumite, uma modalidade de combate do esporte; Amanda conquistou uma prata na mesma modalidade, mas na faixa abaixo dos 59 quilos.

Com as vitórias, as duas subiram de posição no ranking de suas faixas etárias da FPK, a Federação Paulista de Karate. Ana ocupa o primeiro lugar de sua categoria e Amanda o segundo. As duas devem galgar algumas posições no ranking mundial júnior das caratecas que, segundo informações, ainda não foi atualizado com o resultado do Pan-Americano.  

É possível que quem as observasse radiantes, celebrando o pódio no México depois de superar atletas de potências do caratê como os Estados Unidos e o Canadá, talvez não imaginasse que fora do tatame elas travaram outra luta que quase as impediu de levar o Brasil ao pódio do torneio.

Ana Luisa e seu técnico Edson Radica Ana e Radica 1 - Sem patrocínio, medalhistas do litoral de SP podem ficar fora de torneio mais importante do mundo Karatecas na Praia (Imagem: Lila Radica / Instagram@lila._kiss)

Sem incentivos ou patrocínios fixos, Ana, Amanda e suas equipes técnicas angariaram os recursos para custear passagens aéreas, alimentação e transporte para participação no Pan-Americano com rifas, sorteios e vaquinhas virtuais.  

“Às vezes recebemos algumas doações de uma empresa ou outra, mas são coisas pontuais. Pro México, a gente precisou fazer rifa, vaquinha, um monte de coisas pra completar o valor”, explica Edson Radica, treinador de Ana, mais conhecido como Edinho. Ticiano Lacerda, treinador de Amanda, faz coro com ele. “No momento, a gente não tem nenhum tipo de apoio”.

(Da esquerda para a direita) Edson Radica, Ana Luisa, Amanda Sayuri e Ticiano Lacerda, no Pan-Americano de Karatê, na Cidade do México 1 - atletas e técnicos - Sem patrocínio, medalhistas do litoral de SP podem ficar fora de torneio mais importante do mund (Imagem: Acervo Pessoal / Amanda Sayuri)

O desempenho no México credenciou as duas caratecas a representarem o Brasil no Campeonato Mundial de Karate, até 21 anos, a ser disputado de 26 a 30 de outubro deste ano na Turquia.

“O campeonato mundial é o topo do caratê, principalmente nessa categoria de base. Não tem campeonato mais importante que esse dentro do caratê para nós”, explica Ticiano.

"Para chegar nele, a gente passou por várias etapas”, prossegue o treinador de Amanda. “Foram conquistas atrás de conquistas pra que ela pudesse chegar nesse momento e participar desse campeonato mundial. É um sonho de anos, com muito trabalho envolvido, que está sendo realizado agora”.

Edinho, o treinador de Ana, completa. “A participação e a possibilidade de se classificar em um campeonato mundial são um grande indicador de um possível atleta olímpico. Agora, o grande investimento que está tendo nos torneios da categoria júnior, que é de 16 e 17 anos, é justamente porque nas próximas olimpíadas são esses atletas que vão estar na idade olímpica.” 

As Olimpiadas de Paris, em 2024, não terão o caratê entre suas modalidades. O esporte fará parte dos jogos olímpicos de Los Angeles, em 2028, quando Ana e Amanda terão 23 anos.

Amanda Sayuri durante competição Sayuri 2 - Sem patrocínio, medalhistas do litoral de SP podem ficar fora de torneio mais importante do mundo Karateca durante competição (Imagem: Acervo Pessoal Amanda Sayuri)

“Elas estão no caminho. É árduo, muito árduo, mas é possível”, diz Ticiano sobre o sonho olímpico. As duas caratecas não escondem o entusiasmo com a possibilidade olímpica que pode começar a se delinear com a participação no mundial da Turquia, em menos de dois meses.  

“Sinceramente, como ela é a maior [competição] de todas, sempre foi um sonho chegar às olimpiadas”, confessa Amanda, já sem acanhamento. “Não sei se eu vou estar lá, mas se eu chegar, representar o meu país vai ser uma coisa de outro mundo”. Ana, que começou a praticar caratê aos cinco anos, é mais sintética. “É um sonho”.

O sonho, porém, é salpicado pelas dificuldades da realidade, dizem os técnicos. À espreita do tatame, paira um clima de apreensão. Sem dinheiro e nenhum patrocínio para custearem a viagem e a estadia na Turquia, as duas atletas correm o risco de ficar de fora do torneio.  

Enquanto Ana e Amanda se preparam para o mundial intercalando treinos físicos e de caratê, durante seis dias por semana, seus técnicos tentam não contaminar o entusiasmo das atletas com a possibilidade de elas nem sequer embarcarem para a Turquia.

 “Se a Ana não conseguir arrecadar o valor, ela não vai poder competir”, explica Edinho. “Aí, a gente vai ter que avisar a Confederação [Brasileira de Karatê] que a gente não tem condições financeiras pra ir, e ela vai ter que deixar a vaga para a reserva dela. Se a reserva também não tiver condições de ir, o Brasil fica sem representação nessa categoria”.

Ana Luisa e seu técnico Edson Radica Ana e Radica 2 - Sem patrocínio, medalhistas do litoral de SP podem ficar fora de torneio mais importante do mundo Karatecas na Praia (Imagem: Lila Radica / Instagram@lila._kiss)

O mesmo se dá com Amanda, explica seu treinador. “Eu não sei se a Amanda vai para o mundial. Ela está preocupada apenas em treinar. A gente não. A gente além de treinar tem que correr, mas até o momento a gente não faz ideia se ela vai porque os valores são muito altos. Infelizmente, ela corre grande risco de ficar fora do campeonato mundial por questão financeira”.

Tal como fez para ir ao México, a equipe técnica de Amanda abriu uma vaquinha virtual para angariar R$ 23 mil para cobrir as despesas da participação no mundial da Turquia. Até esta terça, 06 de setembro, a vaquinha havia arrecadado pouco mais de R$ 500. Edinho, o sensei de Ana, disse que em breve também pretende recorrer à vaquinha virtual para arrecadar uma soma parecida.

Vaquinha virtual aberta pela equipe de Amanda para tentar ir ao mundial de Karatê Vaquinha Amanda - Sem patrocínio, medalhistas do litoral de SP podem ficar fora de torneio mais importante do mundo Imagem de vaquinha virtual (Imagem: Reprodução / Vaquinha.com)

 “O valor que a gente está colocando também é para os técnicos poderem acompanhar, até porque elas são menores de idade. Um apoio tanto de segurança como emocional, de ter alguém conhecido, que acompanhou os treinamentos no decorrer do ano. Isso é importante para o rendimento das atletas”, explica Edinho.

A possibilidade de, mesmo habilitadas, as atletas não disputarem o mundial, machuca como um golpe baixo, confessam os dois técnicos.

“É doído. A gente ter essa possibilidade [de a atleta não disputar o mundial]”, lamenta Ticiano. “Estados Unidos, França, Egito, que são muito fortes no caratê, e a própria Turquia, todos são países que estão bem na nossa frente. Com certeza os atletas ali não estão fazendo vaquinha online pra disputar o campeonato mundial. Eles estão preocupados apenas em treinar. A gente não.”

Ana Luisa e seu técnico Edson Radica Ana e Radica 3 - Sem patrocínio, medalhistas do litoral de SP podem ficar fora de torneio mais importante do mundo Karatecas na Praia (Imagem: Lila Radica / Instagram@lila._kiss)

“É uma angústia tremenda, né?”, desabafa Edinho, o técnico de Ana, com a voz embargada. “A gente fica muito triste. Eu fui atleta e eu sonhei com a seleção brasileira a vida inteira. Tentei muitas vezes, mas não entrei. Então, ter a minha aluna entrando pra seleção brasileira, é uma emoção enorme, uma felicidade enorme. E saber que ela pode não chegar no auge do sonho dela, ela ter a capacidade, ter a condição física e técnica, mas por falta de recurso financeiro não poder lutar por esse sonho é muito triste”.

“O mais difícil a gente já fez, que é treinar e deixar as atletas prontas pra disputarem num nível desses”, prossegue Ticiano. “Infelizmente, a gente acaba esbarrando na parte financeira. De repente, o governo federal, o estadual ou até o municipal talvez pudesse de alguma forma ajudar atletas desse alto nível. A gente não vai parar de trabalhar, mas a frustração é grande. Qual o exemplo que a gente vai dar pra um atleta que está começando? Aí, ele vê o colega de treino dele classificado pro campeonato mundial e de repente não vai porque não teve condições financeiras de ir”.

A reportagem questionou, nesta segunda (5), a secretaria estadual do Esporte, a secretaria especial do Esporte, vinculada ao Ministério da Cidadania, e a prefeitura de Bertioga sobre o porquê dos custos - no todo ou em parte - da participação das atletas em uma competição internacional de alto nível não serem cobertos por programas de fomento ao esporte das pastas estadual e federal e da gestão municipal da cidade. As secretarias e a prefeitura de Bertioga não responderam.

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