ENTREVISTA

Crise de habitação no litoral norte de SP é mais profunda do que parece, avaliam urbanistas

Para professores de urbanismo, desastre em São Sebastião evidenciou falta de uma visão integrada entre as cidades do litoral norte e política habitacional equivocada na região

Thiago S. Paulo
Publicado em 21/03/2023, às 11h28 - Atualizado às 12h23

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Chuvas recordes alteraram relevo dos morros, segundo o prefeito Felipe Augusto São Sebastião tem cinco novas áreas de risco após um mês da tragédia das chuvas Área de deslizamento de terra em São Sebastião, próximo à residências - Amanda Perobelli/REUTERS
Chuvas recordes alteraram relevo dos morros, segundo o prefeito Felipe Augusto São Sebastião tem cinco novas áreas de risco após um mês da tragédia das chuvas Área de deslizamento de terra em São Sebastião, próximo à residências - Amanda Perobelli/REUTERS

Urbanistas consultados pelo Portal Costa Norte criticam a forma como tem se dado a transferência de famílias desabrigadas de São Sebastião para 300 apartamentos de um conjunto habitacional recém-concluído em Bertioga.

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Na avaliação da professora Isadora de Andrade Guerreiro, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), e do professor José Xaides Alves, do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), os problemas de habitação do litoral norte paulista, esgarçado pelas chuvas de fevereiro, é mais profundo do que parece.

Em entrevista ao Portal Costa Norte, os professores avaliaram as medidas emergenciais adotadas recentemente pelo poder público e apontaram possíveis caminhos que poderiam evitar desastres como o do litoral norte no futuro. Confira as entrevistas.

Portal Costa Norte: Em São Sebastião, são mais de 4.000 desabrigados pelas chuvas de fevereiro e 25.000 em moradias de risco segundo dados do governo estadual e do último plano diretor do município. Neste cenário, idealmente, quais seriam as melhores providências habitacionais tanto no sentido de oferecer moradias aos desabrigados pelas chuvas quanto no de resolver ou mitigar o problema das moradias de risco?

Isadora Guerreiro: É um problema bastante complexo que eu acho que não se resolve de forma simples. As pessoas normalmente pensam ‘ah, é só o governo construir casas’ e acabou. Não é isso. O problema da moradia é bem mais complexo.

São cidades de grande turismo, em que são poucas as áreas planas fora das áreas de risco onde é possível de ter construção e são justamente as áreas mais próximas da praia onde normalmente há casas de veraneio da classe média e média alta. Então, não é que não existam terras. Mas essas terras estão sendo ocupadas por um outro tipo de produção, uma produção de veraneio.

E aí, o que acontece? As pessoas que precisam de casa, que moram ou que trabalham no turismo ou em outras atividades produtivas na cidade acabam ficando sem essas terras pra poder construir suas casas. Então, tem um problema de fundo aí. Não adianta vir falar que precisa construir casa. Precisa saber onde serão construídas essas casas em uma cidade litorânea como São Sebastião que tem poucas terras e essas terras estão sendo disputadas pelo mercado de veraneio.

Então na verdade construir casas significaria desapropriação de terras - e daí sim é uma política importante que precisa ser feita. Precisam ser desapropriadas terras que vão ser mais caras sim. São terras que não estão em áreas de risco e, portanto, não estando em áreas de risco, estão sendo disputadas pelo mercado imobiliário.

E daí, também, tem uma outra questão da moradia que é uma questão complexa em cidades litorâneas. Essas cidades são muito dispersas. São cidades que não tem um núcleo, têm vários. São Sebastião tem cerca de 100 km de litoral. Se você fizer, voltamos à solução mágica, vamos construir casas, que é o governo está falando. Vai construir casa ali no bairro próximo do centro de São Sebastião. Construir casa ali não resolve o problema dos trabalhadores que estão trabalhando nos núcleos urbanos longe do centro de São Sebastião. [O trabalhador] vai morar ali e vai trabalhar a 50 km de sua casa utilizando uma Rio-Santos que em momentos de feriado e tudo mais tá completamente parada? Isso não tem viabilidade.

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Mas a gente tem outras possibilidades de solução habitacional como por exemplo urbanização de favelas, regularização fundiária, melhorias habitacionais. Então as pessoas já construíram suas casas nesses outros núcleos de São Sebastião, assim como era a Vila Sahy.

A Vila Sahy poderia ter sido urbanizada, poderia ter havido investimentos em infraestrutura ali. Não necessariamente a solução é só construção de novas unidades habitacionais. Nesse caso de intervenção em áreas que já estão consolidadas, que as pessoas já construíram, é muito importante a participação dessas famílias. Porque essas famílias convivem com o risco, elas mesmas sabem e podem colaborar na produção de projetos e soluções públicas que mitiguem o risco porque elas conhecem parte do risco a que estão submetidas. Então é importante a participação dessas famílias [na elaboração de políticas públicas].

José Xaides:Olha, se a cidade já conhece as demandas de quantas moradias estão em zonas de risco, e também já os desabrigados e tem um plano diretor, o ideal é que o plano diretor da cidade já tivesse ou se adequasse às zonas especiais de interesse social. Elas têm que ser demarcadas no município. Tanto aquelas áreas de risco, como zonas de remoção, e também as zonas especiais de interesse social para onde essas pessoas deverão ser deslocadas a partir de um projeto correto de moradia que abrigue essas pessoas no futuro.

As moradias, as pessoas que estão desabrigadas, logicamente, o ideal é que, com urgência, não só se tenha abrigos temporários em situações precárias, que sejam em ginásios, escolas, mas que rapidamente o governo do estado e federal até possam mobilizar CDHU, Sabesp, e todos os recursos necessários pra fazer moradias o mais rapidamente possível em forma e em condições que essas famílias possam ser rapidamente abrigadas.

Existem várias técnicas construtivas que são mais rápidas e que poderiam ser contratadas em situações de emergência pra resolver esse problema com maior rapidez. Agora, é necessário que se demarque as localidades, seja em São Sebastião, seja nas demais cidades que sofreram com essas situações.

Uma vez demarcadas, aí tem uma série de instrumentos jurídicos e urbanísticos que poderiam ser mobilizados pra que o estado fizesse, conseguisse ter parcerias com esses donos da terra, incentivos a esses donos da terra, pra liberarem essas áreas e também a própria indução de que essas zonas pudessem ter financiamento e contratos pra fazer rapidamente moradias direcionadas pra habitação social.

Chuvas recordes alteraram relevo dos morros, segundo o prefeito Felipe Augusto São Sebastião tem cinco novas áreas de risco após um mês da tragédia das chuvas Área de deslizamento de terra em São Sebastião, próximo à residências (Amanda Perobelli/REUTERS)

Portal Costa Norte: Após as chuvas, o governo estadual iniciou uma operação de transferência temporária de cerca de 1200 pessoas desabrigadas em São Sebastião para 300 apartamentos de um conjunto habitacional recém-concluído em Bertioga. Esta prática (transferir famílias de uma cidade para outra) é habitual em desastres?

Isadora Guerreiro:Eu acho um absurdo completo. Eu não sabia, é uma informação nova que está me chegando, mas é um absurdo por vários motivos. Primeiro porque a cidade de Bertioga tem seus próprios problemas. Esse conjunto certamente estava dentro do cronograma do planejamento de Bertioga e certamente têm outras famílias de Bertioga que estão precisando destas unidades habitacionais.

Então vira uma política de emergência, quem está desabrigado vai antes, mas e as pessoas para as quais já existia um planejamento pra serem atendidas, ficam sem nada? Então, do ponto de vista [da população] da cidade de Bertioga, é um absurdo.

Do ponto de vista de São Sebastião, se já é um problema construir novas unidades habitacionais em um único ponto que é o centro de São Sebastião é pior ainda ir pra outra cidade. Eu entendo que, do ponto de vista da administração pública, eles estão tentando fazer o possível pra dar um encaminhamento pra essas pessoas que seja de melhor qualidade do que ficar acampado em escolas. Isso com certeza. Por outro lado, não é uma solução adequada.

A questão sempre da solução provisória, incluindo essa transferência pra Bertioga, é que o que a gente conhece do que acontece na política pública é que o provisório sempre vira definitivo. E o provisório virar definitivo é sempre um problemão porque na verdade você institucionaliza a precariedade.

Então é importante ter soluções provisórias em um momento de desastre. Por outro lado, é preciso observar o que significa isso no médio prazo. É um problema de difícil solução, porque ao mesmo tempo em que as moradias precisam ser provisórias, por outro lado, não se constroem unidades habitacionais novas, nem se faz projeto de urbanização de favela em seis meses.

O governo, tanto municipal, quanto estadual e federal, precisam intervir não só em São Sebastião mas em todo o litoral norte porque é uma situação limite que as pessoas estão vivendo. Mas isso não vai demorar menos de dois, três anos pra coisa acontecer. E aí, essas famílias vão ficar no conjunto de Bertioga por esse tempo e depois vão sair?

José Xaides:A transferência de moradores de um município para o outro, ela pode não ser usual, recorrente, mas não tem nada, a princípio, que impeça uma ação regionalizada, que deveria tratar assuntos, especialmente esses de zonas de risco, numa visão regional mesmo.

Então, nesse sentido, a questão é apenas de entender que é um momento de emergência e que essas soluções transitórias poderiam estar sendo feitas, logicamente, sob coordenação do governo do estado.

A questão maior que deve ser analisada também, para além apenas do abrigo, são as situações de pertencimento das pessoas, as situações de entender onde que trabalham cada uma das pessoas, o que fazem onde moravam, a situação das escolas das crianças, se elas vão ser transferidas, os problemas que isso vai acarretar, de transporte, de conhecimento das áreas.

Então, pode ser que a questão do vínculo das famílias, das crianças, dos jovens, dos idosos que vão ser remanejados tragam uma série de outros problemas, de vagas na escola, de atenção nos postos de saúde, de questões relacionadas ao sentimento de perda dessas pessoas, ao pertencimentos delas nas áreas onde elas estavam.

Então, pode até não ser uma situação ideal, ela [transferência] é possível mas ela traz consequências que deveriam ser observadas da mesma forma por profissionais e por uma atenção de saúde mental, de questões relacionadas à psicologia, à escola, educação. Não é só mudar uma pessoa de um lado pro outro.

Das 1.500 moradias, foram entregues 600 apartamentos (Reprodução/TV Cultura Litoral)

Portal Costa Norte: O prefeito de Bertioga, Caio Matheus, alega que a cidade já tem déficit habitacional e demonstrou resistência em receber as famílias desabrigadas nos apartamentos da cidade. A alegação dele se justifica?

Isadora Guerreiro:Eu acho que tem duas questões aí. Por um lado isso se justifica. Mas isso precisaria ser quantificado. Certamente isso [Conjunto Habitacional] já estava sendo planejado pra cidade de Bertioga. Eu entendo o lado dele. Não é como se Bertioga fosse uma cidade rica e São Sebastião pobre. Muito pelo contrário, São Sebastião deve ter muito mais recursos do que Bertioga.

Não tem motivo nenhum pra São Sebastião não ter uma infraestrutura habitacional adequada. Realmente, eu diria, que é um problema bem grave, no caso de São Sebastião.

No caso de Bertioga, por um lado é compreensível a resistência do prefeito, por outro lado a gente fica meio assim por conta da solidariedade com os desabrigados da cidade vizinha. Então, eu acho que tem os dois lados. Acho que vai precisar de um esforço de diplomacia entre as duas cidades, porque o prefeito de Bertioga está coberto de razão no sentido de que ele tem os próprios problemas pra cuidar. E São Sebastião, mesmo tendo recursos, não soube cuidar dos próprios problemas.

No entanto, do ponto de vista humano é pouco solidário, pouco acolhedor, pouco diplomático. Se eu estivesse aí no meio, veria tratativas diplomáticas em torno disso. Fazer acordos pra garantir que seja provisório mesmo, pra cidade de Bertioga receber recursos de contrapartida pra acolher essas famílias. Tem questões que podem ser colocadas em um acordo diplomático. É assim que os países fazem e as prefeituras podem fazer também.

Essas cidades litorâneas elas funcionam meio de forma orgânica entre elas, é quase como uma região metropolitana em que as cidades estão conurbadas [integradas], elas têm dinâmicas conjuntas.

Eu acho que esse desastre, e esse tipo de tratativa entre Bertioga e São Sebastião, levam pra uma coisa que eu acho que o governo de São Paulo poderia considerar que é ter uma espécie de planejamento de desenvolvimento conjunto entre as cidades. Não adianta cada cidade pensar seu desenvolvimento urbano de forma separada umas das outras. Vai dar coisa ruim, que é o que já está acontecendo, uma jogando seus problemas pra outra.

Precisa ser pensado um plano conjunto de desenvolvimento do litoral norte. Isso o governo do estado poderia enfrentar. Se colocar como uma entidade superior aos municípios e juntá-los em uma entidade que pense o desenvolvimento do litoral norte como um todo, inclusive na questão ambiental.

José Xaides: Eu creio que a falta de uma visão integrada entre as cidades, do ponto de vista do planejamento, e nesse caso ficou configurado que é preciso tratar a situação do litoral norte também em uma visão regionalizada, intercidades, deveria ter a possibilidade terem uma visão mais solidária, mais no sentido de ajudas mútuas em todos os sentidos.

De qualquer forma, vale a consideração que eu fiz anteriormente de que o problema não se reduz às questões do abrigo temporário das pessoas, mas a um conjunto de fatores de vida dessas pessoas que tem que ser vistos com a mesma urgência das moradias.

Escutar essas pessoas, entender o problema pessoal de cada família, onde elas trabalham, se essa mudança não vai trazer pra elas problemas de vida, financeiros, perda de trabalho, questões de locomoção, escola pras crianças, os vínculos afetivos. Então tudo isso é importante e nos momentos de tragédia tem que ser tratado com o mesmo rigor que a gente trata das obras físicas.

Então, nesse sentido, o prefeito, a resistência dele, pode ser que seja motivada também por perceber que há outros componentes que têm que ser resolvidos também, para além da habitação. Claro que o ideal seria fazer as construções próximas ou na própria cidade onde os desabrigados já vivem. Nos vazios urbanos que existam, em lotes vazios, em glebas especulativas sem risco.

E usar os instrumentos que eu disse anteriormente e que permitem que a prefeitura e o estado possam ter menos ônus pra desapropriar, na verdade pra conquistar terras por outras formas, por exemplo pelo potencial construtivo, por consórcio imobiliário.

Então há medidas [jurídicas] importantes que podem ser adotadas na própria cidade. E agilidade de uma técnica construtiva que permita erguer os imóveis rapidamente. 

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