LANÇAMENTO

Nazismo: 'Anjo da morte' falecido em Bertioga é tema de novo livro

Josef Mengele morreu afogado na Praia da Enseada em 1979; obra trata impunidade do criminoso de guerra que viveu 20 anos no Brasil sem ser pego

Rebeca Freitas
Publicado em 08/11/2023, às 14h11

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Mengele (segundo da esq.), foi apelidado de 'Anjo da Morte' pela frieza com que despachava prisioneiros para morte - Karl Hoecker/Museu do Holocausto
Mengele (segundo da esq.), foi apelidado de 'Anjo da Morte' pela frieza com que despachava prisioneiros para morte - Karl Hoecker/Museu do Holocausto

Um livro sobre o nazista que morreu afogado nas águas da praia da Enseada, em Bertioga, foi lançado na terça-feira (7). Se trata da obra de jornalismo literário Baviera Tropical, escrita por Betina Anton e publicada pela editora Todavia. A obra é baseada em pesquisas inéditas, com base em documentos e entrevistas, sobre o período do médico Josef Mengele no Brasil. O livro gira em torno da pergunta: como foi possível que o criminoso de guerra vivesse tanto tempo no Brasil sem ser pego?

Baviera Tropical está sendo publicado simultaneamente em outros países como Estados Unidos, Polônia, Hungria, Portugal, Holanda, Finlândia, Sérvia e Eslováquia. A jornalista que atua como editora de Internacional na TV Globo traz questionamentos em seu livro que nos ajudam a pensar o Brasil e a entender não apenas Mengele, mas também os destinos e as estradas que temos escolhido para nós mesmos. 

Conhecido como "anjo da morte", Mengele é responsável pelo extermínio de 400 mil judeus durante a Segunda Guerra. Sua morte aconteceu em fevereiro de 1979. Ele estava nadando na praia bertioguense da Enseada com seus amigos, Liselotte e Wolfram Bossert, e os filhos do casal. “Ele nadava bem, mas naquele dia começou a levantar o braço pedindo ajuda. Liselotte achou que o amigo tinha sofrido um derrame. O marido dela tentou socorrê-lo, mas não adiantou. Ele já estava morto”, explica Anton ao Portal Costa Norte

O corpo de Mengele foi levado de carro funerário até o Instituto Médico Legal do Guarujá. Lá, o médico de plantão, o legista Jaime Edson Andrade de Mendonça, constatou que a causa mortis foi “asfixia por submersão na água”, ou seja, afogamento.

Como ele veio parar em Bertioga? 

Mengele morava em São Paulo e estava deprimido por causa da morte recente do amigo Wolfgang Gerhard, na Áustria. Os amigos aqui no Brasil decidiram animá-lo e o convidaram para passar uns dias na praia com eles em Bertioga, onde tinham alugado uma casa. Mengele aceitou o convite e tomou um ônibus para Bertioga.

A autora reforça ao Portal Costa Norte a importância de conhecermos a história de Josef Mengele nos dias de hoje se dá em forma de questionarmos a impunidade. “Em primeiro lugar, é importante conhecermos sua história porque ele foi o médico nazista mais procurado do mundo e viveu quase duas décadas aqui no Brasil, sem nunca ser descoberto. Temos que nos perguntar como isso foi possível. Em segundo lugar, ao ler sobre sua história, o leitor vai poder aprender muito sobre temas relevantes ainda hoje e que exigem nossa reflexão, como o racismo, antissemitismo, punição de criminosos de guerra e ética em pesquisas médicas”, afirma a mestre em história internacional. 

Sobre a autora 

Betina Anton nasceu em São Paulo e se formou em jornalismo pela ECA-USP. Fez mestrado em história internacional na London School of Economics and Political Science com uma bolsa de estudos Chevening. É editora de Internacional na TV Globo há mais de quinze anos e venceu o Prêmio Vladimir Herzog em 2019. Sua história rapidamente se entrelaça com a narrativa do livro por conta de um episódio vivido em sua infância. Confira: 

Trecho do livro 

Betina Anton
Anton é responsável pela obra de não ficção - Todavia 

Uma das minhas primeiras memórias de infância é de uma professora. Não era uma professora qualquer, talvez só na aparência. Tante Liselotte tinha uma fisionomia europeia, era magra e usava o cabelo enrolado com permanente, como a maioria das mulheres na década de 1980. Nenhuma criança a chamava de tia, apenas de Tante. Era um dos costumes daquela escola, uma ilha germânica no coração de Santo Amaro, em São Paulo. Ela falava comigo misturando português e alemão, o que me trazia uma sensação familiar, porque era como eu estava acostumada em casa. Nas manhãs frias, minha mãe me mandava para a aula com uma calça de pijama por baixo da roupa. Era Tante Liselotte que tirava meu excesso de camadas, conforme o sol ia saindo e as brincadeiras iam esquentando. Lembro de me esconder debaixo da mesa dela quando não queria participar de alguma atividade.

Nossa sala tinha janelas enormes por onde dava para ver um jardim... Também me lembro de como corríamos soltos pela grama e como eu gostava de apertar as florzinhas vermelhas, que dizíamos ter mel dentro. Um portão de madeira baixo e arbustos de azaleia cor-de-rosa nos separavam do resto do colégio e dos alunos “grandes”. Nesse pequeno universo, eu me sentia segura. Um dia, porém, as coisas mudaram. Alguém avisou que Tante Liselotte não viria mais. Não teve despedida. Foi uma ruptura sem mais nem menos no meio de um semestre letivo.

Outra mulher, que não lembro bem quem era, iria substituí-la e pronto. Eu tinha apenas seis anos de idade e estranhei perder a minha professora de uma hora para outra. Por que ela não viria mais? O que aconteceu? Eu sentia que o zum-zum-zum dos adultos em torno desse assunto guardava um ar de gravidade. Não sabia exatamente o que era, mas na minha percepção infantil entendi que havia algo errado.

Tante Liselotte, a quem nossos pais nos confiavam todas as manhãs, tinha dado proteção ao criminoso nazista mais procurado do mundo naquele momento: Josef Mengele. Por uma década, minha professora recebeu o fugitivo em sua própria casa no bairro do Brooklin, não muito longe da escola na Zona Sul de São Paulo. Nos fins de semana, viajava com ele e a família para um sítio em Itapecerica da Serra e, nas férias, para a praia de Bertioga. Chegou a levá-lo à porta da escola numa festa junina, sem que ninguém desconfiasse da identidade daquele velho nazista, vestido com um belo sobretudo de estilo europeu e chapéu de feltro.

Liselotte o apresentou ao diretor do colégio como um amigo da família. (Nada que pudesse levantar suspeitas numa escola que reunia a comunidade germânica. Praticamente todo mundo tinha um parente da Alemanha, da Áustria ou da Suíça.) Foi também ela quem enterrou Mengele com um nome falso no cemitério do Embu, em 1979, para que ninguém descobrisse sua identidade nem mesmo depois de morto. Com essa artimanha, despistou as autoridades, os caçadores de nazistas e as vítimas que buscavam por justiça.

Durante mais de seis anos, Liselotte achou que essa história tinha ficado para trás, literalmente enterrada. Seguiu sua rotina normalmente, dando aulas para as crianças pequenas no colégio alemão. No entanto, em junho de 1985, o segredo veio à tona inesperadamente e sua vida virou de cabeça para baixo.

A professora não só teve de sair da escola de forma abrupta como ficou malvista na comunidade, passou a receber ameaças anônimas por telefone e precisou comparecer diversas vezes à Superintendência da Polícia Federal para dar explicações. Acabou indiciada por três crimes: esconder um clandestino, inserir declaração falsa em documento público e usar documento falso. Dos 34 anos em que Mengele viveu escondido depois da Segunda Guerra Mundial, pelo menos dezoito foram no Brasil e os últimos dez, sob proteção dela e do marido.

Durante todo esse tempo, Liselotte nunca pensou seriamente em entregá-lo para a polícia. É claro que se confessasse isso para o delegado da Polícia Federal, teria problemas com a Justiça. Por isso, preferiu adotar uma postura de vítima e disse que ficou com medo de avisar as autoridades sobre a presença de Mengele no Brasil porque tinha recebido ameaças.

Pessoas ligadas ao médico nazista teriam dito que ela não deveria abrir a boca se quisesse proteger seus filhos. Essa versão até pode ser verdadeira, mas não estava completa. No íntimo, Liselotte acreditava não ter feito nada de errado ao acolher um criminoso nazista procurado em toda parte. No seu raciocínio (e usando suas próprias palavras), ela queria ajudar “de bom coração” uma pessoa “em apuros”, um amigo.

Entretanto Mengele, definitivamente, não era um simples “amigo”. Era um foragido da Justiça alemã, responsável por incontáveis assassinatos, segundo a ordem de prisão expedida pelo Tribunal de Justiça de Frankfurt. É verdade que Mengele entrou na vida de Liselotte usando nome falso, e por isso ela não tinha como saber, no início, quem ele era. 

Quando descobriu a verdadeira identidade dele já era tarde: tinha feito amizade e a família toda estava afeiçoada a ele. A revelação bombástica de que aquele homem era, na realidade, um criminoso não estremeceu o relacionamento entre eles. Muito pelo contrário. Liselotte manteve-se fiel ao amigo até o fim.

Baviera Tropical tem 384 páginas e está sendo comercializado por R$ 89,90 na versão física e R$ 59,90 o e-book.

Rebeca Freitas

Rebeca Freitas

Formada pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp)

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