DEPOIS DA CATÁSTROFE

Dez meses após tragédia que matou 64, bairro no litoral de SP ainda vive pesadelo

Moradores da Vila Sahy, bairro mais afetado pelos desabamentos provocados pelas chuvas de fevereiro, ainda lutam por moradia

Redação
Publicado em 21/12/2023, às 13h51 - Atualizado às 14h40

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Imagem parcial da destruição ocorrida devido às chuvas intensas - Imagem: Governo/SP
Imagem parcial da destruição ocorrida devido às chuvas intensas - Imagem: Governo/SP

Dez meses depois dos deslizamentos que ceifaram 64 vidas e deixaram mais de 4 mil desabrigados ou desalojados, em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, moradores do que restou da Vila Sahy, a comunidade mais atingida pelo temporal, ainda se veem envolvidos em uma série de disputas por moradia. Nascido nos anos 90, o bairro na Barra do Sahy, na costa sul de São Sebastião, reúne cerca de 3.000 moradores, grande parte trabalhadores dos setores de turismo e serviços da cidade. A área mais crítica da comunidade reúne cerca de mil residências, entre a rodovia Rio-Santos e a serra do Mar.

As disputas começaram nas semanas seguintes à tragédia, com o início da transferência de 300 famílias da Vila Sahy para o conjunto habitacional Caminho das Árvores, na vizinha Bertioga. A medida gerou embates entre o prefeito de Bertioga Caio Matheus e a CDHU. O prefeito argumentava que as famílias de Bertioga, que já aguardavam pelos apartamentos, não poderiam ser prejudicadas. A determinação da CDHU, que postulava uma transferência  temporária, prevaleceu.

Em setembro, a Secretaria de Habitação do governo Tarcísio deu início à demolição de 393 imóveis, avaliados como condenados. A ação marcou o início de protestos por indenização e mais diálogo, que perduram até hoje por parte de moradores. No início de dezembro, as reclamações escalaram, quando a Procuradoria-Geral do estado, subordinada ao governo, entrou na Justiça com um pedido de evacuação e demolição de 893 residências, quase o triplo do número calculado meses antes.

Na ação judicial em que pedia a evacuação dos imóveis, o governo argumentava sobre o risco de a área sofrer deslizamentos em caso de chuvas e que era preciso desocupar a área para obras de contenção.

vista área de vila sahy
Vista aérea parcial da Vila Sahy antes dos deslizamentos. Imagem: Reprodução / ICC

Um trecho da ação pede autorização para o “Estado de São Paulo evacuar, ainda que contra vontade, os moradores situados em área de risco da Vila Sahy, para que seja possível a demolição das edificações em área de risco”. O pedido desencadeou uma onda de desespero entre moradores que, por meio de associações, articularam outra série de protestos. Mais uma vez,  os residentes alegavam que não houve consulta à comunidade e exigiam indenização. O primeiro protesto, em 3 de dezembro, reuniu 500 pessoas, disseram fontes da comunidade. Outros dois, em 10 e 13 de dezembro, reuniram mil moradores cada.

Um desses grupos, a União dos Atingidos, também articulou protestos por mais transparência nas ações do governo e exigiu reuniões e audiências, para discutir sobre quais casas seriam demolidas e para onde os residentes seriam realocados. Pressionado, o governo abriu  diálogo com a população. “O governo do Estado de São Paulo, por meio da Procuradoria Geral do Estado, recuou e, atualmente, busca estabelecer diálogo direto com a população”, divulgou a Amovila (Associação de Moradores da Vila Sahy), há uma semana.

Dias depois, no entanto, o Tribunal de Justiça autorizou o governo a demolir parte dos imóveis. Expedida na terça-feira (19), a decisão do juiz Vitor Hugo Aquino de Oliveira, da 1ª Vara Cível de São Sebastião, respondeu a petição do governo estadual, que pedia autorização para demolir quase 1.000 imóveis.

Na decisão, o magistrado autoriza a demolição de 198 casas desocupadas e de 39 obras de construção, em andamento, citadas na petição como de risco alto ou muito alto. Segundo a decisão judicial a que a reportagem teve acesso, não foram informados, no processo, quais imóveis devem ser demolidos especificamente. Para seguir com a demolição, a Justiça determinou que o governo identifique os imóveis e moradores afetados. Entre as determinações judiciais, consta que o governo realize uma audiência pública com os moradores e providencie laudo técnico e avaliação econômica das residências no radar da demolição. Se não atender às determinações, o governo será multado em R$ 300 mil por imóvel demolido.

Moradores celebraram as contrapartidas exigidas pela Justiça. “Deu uma respirada, mas tem muitas coisas ainda que têm que ser revisadas”, disse um morador em comunicado divulgado pela União dos Atingidos na quarta-feira (20). Na mesma data, a Amovila anunciou uma assembleia geral de moradores, prevista para o sábado (23), no próprio bairro. “O tema central da reunião serão esclarecimentos sobre a liminar”, explicou a associação.

Embates com ONG Gerando Falcões

Nesse meio tempo, as ações da ONG Gerando Falcões também geraram protestos. No início de março, no auge da comoção nacional causada pela tragédia, a ONG arrecadou R$ 9 milhões em poucos dias, por meio da campanha #TamoJunto, em apoio aos moradores de São Sebastião, sobretudo da Vila Sahy, afetados pelos deslizamentos e desabamentos. A campanha prosseguiu e arrecadou mais que o dobro dos R$ 9 milhões iniciais. De acordo com relatório disponível no site da Gerando Falcões, ao todo, foram arrecadados R$ 23 milhões na campanha.

Manifestações questionando a ação da ONG começaram no final do primeiro semestre, quando parlamentares de São Sebastião e moradores afetados protestaram por mais agilidade na destinação dos recursos arrecadados. Fora isso, segundo fontes de associações de moradores, o relatório que embasou o pedido de demolição do governo estadual foi pago com os recursos arrecadados na campanha #TamoJunto.

Procurada, a ONG Gerando Falcões disse que "preza pela transparência e credibilidade das ações e campanhas de combate à pobreza que realiza. Assim, para apoiar as famílias atingidas pelas chuvas no litoral norte de São Paulo, a instituição mobilizou o seu ecossistema de doadores (pessoas físicas e jurídicas) em fevereiro deste ano, e tem atuado em três etapas principais: emergencial; reconstrução; prevenção".

Na etapa de reconstrução, a ONG explicou que está em constante diálogo com a comunidade e tem atuado em necessidades diversas, todas mapeadas junto à comunidade. "Também faz parte desta etapa, colaborar com a elaboração de estudos técnicos que auxiliem nas melhores soluções para a região e que prezem pela segurança da população local". 

A ONG não respondeu quanto, dos R$ 23 milhões arrecadados, já foi destinado para a reconstrução do bairro e apoio aos moradores afetados, ou se financiou o relatório que embasou a petição de demolição do governo estadual. 

O que diz o governo do estado

Contatado, o governo de São Paulo divulgou que a atuação na Vila Sahy tem como único objetivo garantir a segurança das pessoas. “Todas as famílias que precisarem sair do bairro, por estarem na área apontada por estudos técnicos de risco geológico e hidrológico, terão atendimento habitacional garantido, como informado em reunião em que a comunidade foi convidada a participar nos dias 7 e 16 de dezembro”.

O governo estadual acrescentou que serão entregues 704 unidades habitacionais em Baleia Verde e Maresias e informou que outras 256 unidades estão em fase de licitação na Topolândia. “Temos ainda cerca de 300 moradias em projeto em Camburi e outras 250 que serão erguidas na própria Vila Sahy, no projeto de urbanização em elaboração, totalizando mais de 1.500 unidades em um município. Segundo o governo estadual, a Procuradoria Geral não foi notificada da decisão.

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